terça-feira, 17 de junho de 2014

Brasileiro sofre para interpretar até bula

Por Victor Vieira, estadao.com.br

Índice de Letramento Científico mostra falta de domínio sobre conceitos básicos

Decifrar contraindicações de remédios é uma tarefa tão difícil que o consultor de vendas Sérgio Brant costuma jogar as bulas fora e perguntar direto ao médico. E ele não está sozinho. Quase dois terços dos brasileiros têm só conhecimentos básicos ou ausentes sobre a ciência que envolve situações cotidianas, como ler rótulos nutricionais, estimar o consumo de energia de eletrodomésticos ou interpretar os dados das bulas.

Isso é o que mostra o Índice de Letramento Científico, que calcula a habilidade das pessoas de aplicar conhecimentos científicos básicos em atividades rotineiras. A medição inédita foi desenvolvida pela Abramundo, empresa que produz materiais de educação em ciências, em parceria com o Ibope, o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa. Foram ouvidas 2.002 pessoas, entre 15 e 40 anos, nas nove principais Regiões Metropolitanas do País. Veja exemplos de questões aplicadas no teste.

Só 5% foram considerados proficientes, com domínio de conceitos e termos mais complexos, além da capacidade de interpretar fenômenos. “A linguagem das bulas é complicada, com muitos nomes científicos”, diz Brant, de 67 anos, que toma medicamentos para diabetes e hipertensão. “Preciso reler para entender”, confessa. “Ou então jogo a bula no lixo e pergunto ao médico.”

Para evitar distorções nos resultados, pelas dificuldades de interpretação de texto, participou do estudo apenas quem tinha mais de quatro anos de estudo. Os entrevistados responderam a perguntas e declararam as próprias habilidades. Isso levou a uma disparidade curiosa: o desempenho nos testes revela dificuldades bem maiores do que as admitidas.

Segundo o levantamento, o nível de escolaridade maior não significa necessariamente intimidade com as ciências. Dos entrevistados com curso superior, 41% tinham competência ausente ou elementar. A proporção de pessoas nesse grupo salta para 66% entre aqueles com ensino médio completo e chega a79% para quem só terminou o fundamental. “O ensino médio não fez tanta diferença”, analisa o presidente da Abramundo, Ricardo Uzal. “Parece que o conteúdo mais fixado é o dos primeiros anos na escola”, afirma.

Ciência na prática. Na opinião dos coordenadores do estudo, a competência alta em conhecimentos científicos práticos deixa as pessoas com maior senso crítico no consumo, na preservação ambiental e na saúde. “No supermercado, sempre leio os rótulos dos alimentos. E me preocupo com a quantidade de calorias, de gordura”, diz a estudante de Arquitetura Romila Rocha, de 18 anos, que nega dificuldades nesse campo. “Quando meus pais têm problemas desse tipo, eles correm até mim para pedir ajuda”, diz a jovem, que atribui seu desembaraço científico às recordações do colégio. “Era boa em Física, Química e Biologia”, lembra.

Mais tempo longe da sala de aula, Brant garante que seu aprendizado de ciências foi no trabalho. “O que sei foi por experiência prática, no contato com a indústria”, afirma ele, que já atuou no comércio de suplementos alimentares.

O mercado de trabalho, destaca o estudo, é justamente a área em que o traquejo científico pode render mais frutos. “Só quem está no grupo dos 5% (proficientes) consegue questionar e inovar”, explica Ricardo Uzal.

Entre os entrevistados com cargos gerenciais só 12% eram proficientes. No grupo de profissionais liberais, empresários, comerciantes ou proprietários rurais, o total foi de 15%.

Conteúdo e realidade. Os tropeços nas ciências dão pistas sobre dificuldades de professores em conectar os conteúdos à realidade dos alunos. “A educação científica é apartada do mundo real”, avalia o físico e educador da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Carlos Menezes. “Isso começou a mudar só nos últimos anos”, diz ele, que ajudou na elaboração dos questionários da pesquisa.

Para a especialista em Educação Científica da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Alice Helena Pierson, a responsabilidade não é só da escola. “A população adulta, em geral, não é estimulada a se posicionar em debates técnicos ou científicos.” Também falta mais interesse pelo tema: 39% não gostam de estudar ciências ou ler texto técnico. 

Outro ponto preocupante, na opinião de Alice Helena, é a diferença entre resultados dos testes e da autodeclaração. “Se a pessoa acha que sabe, não tem noção das limitações e deixa de buscar ajuda”, diz.

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