Camila Rodrigues da Silva
Do UOL, em Florianópolis
Diversos problemas da educação, como as doenças e a deserção
de professores, podem ser causados pela própria estrutura da escola. Essa é a
ideia que sintetiza o conceito de “abolicionismo escolar”, criado pelo
pesquisador Danilo Alexandre Ferreira de Camargo, mestre pela Faculdade de
Educação da USP (Universidade de São Paulo).
A escola, segundo sua análise, é uma ferramenta do Estado
para gerenciar as populações urbanas – da mesma forma que o manicômio, a
polícia, a prisão e o hospital, baseado no filósofo francês Michel Foucault.
Ele esclarece não ter respostas para os problemas,
porém aponta que o formato da educação baseado na escola deve ser questionado.
“Não tenho a solução para os problemas escolares, mas diria que devemos começar
a duvidar das soluções escolares que são vendidas todos os dias com as mais
diversas intenções e pelos preços mais variados”, completa.
Confira a entrevista a seguir.
Camargo - A
minha pergunta é: por que temos tanta dificuldade em imaginar uma educação sem
escola? Por que, na maioria das vezes, imaginamos que sem escolas o nosso
universo social entraria em colapso? Por que a escola se tornou esse limite
cognitivo para pensarmos a educação e a própria sociedade?
UOL
Educação – Quais características da escola tornam sua rotina “insuportável”, do
seu ponto de vista? Isso sempre fez parte da vida escolar?
Camargo - É
preciso chamar atenção para o fato de que, do século 19 ao início do século 21,
nenhuma reforma educacional, teorizada ou praticada, modificou substancialmente
a rotina do cotidiano escolar no que tange ao sequestro dos corpos infantis e
ao controle rigoroso do espaço e do tempo a que estão submetidos todos aqueles
que são escolarizados.
Apesar das aparentes modificações ao longo do tempo (da
palmatória ao palmtop), a escola é uma instituição que parece conservar sua
essência já há muito naturalizada: todos os dias, uma legião de crianças,
dotadas de um número de matrícula, um uniforme, um caderno de notas, são
confinadas por algumas (ou muitas) horas no interior de salas de aula, sob a
supervisão de um professor, para que possam ocupar o tempo e aprender alguma
coisa, pouco importa a variação moral dos conteúdos e das estratégias
didático-metodológicas de ensino.
O que realmente está em jogo nessa reclusão
diária não é tanto a aprendizagem, mas a forma pela qual é produzida uma
específica forma de vida: o sujeito escolar.
No caso específico da minha investigação, tentei demonstrar
que a recente “epidemia” de doenças ocupacionais é a manifestação atual desse
velho problema da insuportabilidade da rotina escolar. Por que se suporta esse
insuportável? Por que queremos que as pessoas que lá estão – alunos,
professores, funcionários – vivenciem esse insuportável de uma maneira ética,
criativa, eficiente?
UOL
Educação - No Brasil, houve rejeição do projeto de lei que regulamentaria o
ensino domiciliar, em 2011. A que se atribui essa decisão?
Camargo - Uma
educação não escolar é um grande tabu para as nossas sociedades modernas e
industriais. Isso porque a instituição escolar é vista como um espaço
necessário de transição entre o universo privado da família e a esfera pública
da política. Além disso, no Brasil, a escolarização massiva da população é um
fenômeno recente e incompleto e, por isso mesmo, a recusa à obrigatoriedade da
escola ainda é vista como uma ameaça ao desenvolvimento do Estado e à inserção
dos contingentes populacionais ao sistema produtivo.
Contudo, não é difícil prever que o questionamento deste
“direito à escola”, que na verdade é uma obrigação legal, tende a ser cada vez
mais frequente nas próximas décadas.
UOL
Educação - Quais seriam os indícios de que o sistema escolar esteja “em vias de
explodir”, como você diz em sua pesquisa?
Camargo – A minha
hipótese geral de trabalho era a de que os problemas clássicos do universo
escolar, tais como a indisciplina, a evasão e até mesmo a violência são
respostas políticas [à crise da escola].
As rachaduras da hegemonia da escola se apresentam nas
tragédias que cotidianamente suspendem, ainda que temporariamente, a ordem
escolar. Daí o meu interesse em estudar o fastio, a patologização e a
criminalização dos professores e dos alunos. Quando o insuportável da escola
não puder mais ser administrado pelas ciências do Estado algo acontecerá:
talvez uma explosão, como previa Foucault, talvez apenas o desaparecimento
gradual e silencioso dessa tecnologia de governo da infância.
UOL
Educação - A escola, como instituição, estaria atualmente “agonizante”? Ela não
estaria mais dando conta de tornar as crianças “contemporâneas de seu próprio
tempo”, como você coloca?
Camargo - A queixa
mais recorrente é essa: a escola está agonizante, a escola está em crise etc.
Antes de qualquer coisa, é preciso reconhecer que as mazelas da escola são
muito rentáveis e parecem se proliferar na mesma medida em que proliferam os
diagnósticos e os prognósticos para uma possível cura.
É o grande paradoxo da estrutura escolar: criticamos quase
tudo o que se passa na escola (os alunos, os professores, os conteúdos, os
gestores, os políticos) e, ao mesmo tempo, desejamos mais escolas, mais
professores, mais alunos, mais conteúdos e disciplinas.
Da minha perspectiva, não se trata de agonia da estrutura
escolar. A ideia é exatamente o contrário. A minha questão é: será possível não
mais tentar resolver os problemas da escola, mas compreender a existência da
escola como um grave problema político?
UOL
Educação - Essa “escola” de que fala também inclui a universidade? Que tipo de
formato de educação substituiria o ensino superior?
Camargo - Se
pararmos para pensar nas mudanças ocorridas na última década, sobretudo ao que
se refere à produção e ao compartilhamento de informações, não é difícil
imaginarmos que a vida universitária tal qual a conhecemos, como seus doutores
catedráticos, seus arcaicos rituais de fala, sua estrutura de poder
centralizada e sua forma específica de legitimação da nossa ordem social a
partir de títulos acadêmicos, não sobreviverá até o fim deste século.
UOL
Educação - Por fim, você questiona se o desaparecimento da escola não seria a
“morte” do homem moderno. O fim da escola significaria também o início de um
novo formato de sociedade?
Camargo - Há
muito tempo especula-se sobre tal morte e ela é sempre adiada. O que gostaria
de enfatizar é que ninguém pode dizer como será a sociedade sem escolas, mas
acredito que num futuro não tão distantes as pessoas já não conseguirão
imaginar como eram as sociedades com escolas.
E antes que me pergunte qual a solução para os impasses
atuais da escola: eu diria que devemos começar a duvidar das soluções escolares
que são vendidas todos os dias com as mais diversas intenções e pelos preços
mais variados.
Fonte:
noticias.bol.uol.com.br
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