Da Agência Fapesp
Em 1678, o então rei dos Palmares firmou um acordo de paz com o
governador de Pernambuco, a autoridade máxima sobre um território que englobava
os atuais estados da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, além de
Pernambucano.
A negociação durou alguns meses e envolveu intérpretes, envio de
embaixadas, presentes e libertação de prisioneiros. De um lado, Ganazumba (ou
Gangazumba), tio de Zumbi, séculos depois apontado como símbolo da resistência
contra a escravidão; de outro, dom Pedro de Almeida, governador prestes a
voltar para Portugal.
Até agora pouco estudado e comentado pela historiografia, o
episódio vem ganhando contornos mais definidos sob a luz de documentos
originais, boa parte deles inéditos. O material, manuscrito, inclui cartas,
despachos de conselheiros do regente português, crônicas e até rascunhos
encontrados em Portugal pela historiadora Silvia Hunold Lara, professora da
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em pesquisa realizada no âmbito do
Projeto Temático "Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e
política (séculos XVII a XX)".
"A década de 1670 é importante porque marca o
reconhecimento por parte das autoridades portuguesas e coloniais desse sobado
(estado africano) em Palmares. Os termos do acordo negociado em 1678 constituem
a maior evidência disso", disse a historiadora.
Em seus estudos, Lara retoma teses de uma vertente da
historiografia que dá ênfase às raízes africanas de Palmares, na qual se
incluem os brasileiros Nina Rodrigues (1862-1906) e Edison Carneiro (1912-1972)
e os norte-americanos Raymond Kent (1929-2008), Stuart B. Schwartz e John
Thornton.
De acordo com Lara, um documento-chave para entender Palmares é
uma crônica anônima, com data atribuída a 1678, escrita logo depois do acordo
de paz selado entre Ganazumba e o governo de Pernambuco, quando d. Pedro de
Almeida volta a Portugal e vai mostrar seus feitos às autoridades portuguesas.
"É uma crônica extensa, que faz uma história de Palmares,
desde o seu início até 1678. Dá nome aos mocambos, descreve as relações entre
os chefes militares e os chefes dos mocambos, conta as expedições feitas e
equipara a uma conquista militar a vitória [parcial] obtida em 1677 por uma
expedição que destrói os mocambos e está na origem do acordo de paz",
disse.
O grande ponto, segundo a professora titular do Departamento de
História da Unicamp, é que essa crônica sempre havia sido lida pelos estudiosos
a partir de uma publicação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro de 1859 – feita quase 200 anos após ser redigida.
"As pessoas não viram o original, que estava perdido nos
arquivos. Quando você olha o original, pode ver que houve transcrições
incorretas", disse Lara. Um bom exemplo é o dos nomes das lideranças
palmarinas e dos principais mocambos ali descritos – com diferenças em relação
aos consagrados pela historiografia.
"A maior parte de quem lidou com Palmares trabalhou com uma
documentação impressa. E quem transcreveu e publicou fez uma seleção. Ao ir às
fontes e aos arquivos, localizei uma quantidade muito grande de fontes ao redor
desses documentos transcritos, muitas nunca publicadas", disse.
Os achados estavam no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e na biblioteca pública da cidade de
Évora, interior de Portugal.
Saindo da trilha dos Imbangala
Lara também parte de um trabalho publicado em 2007 por Thornton
e pela historiadora Linda Heywood, da Boston University, nos Estados Unidos,
sobre a história das guerras na África Central para estudar quem eram os
africanos escravizados e trazidos para o Brasil que fugiram e acabaram se
organizando em agrupamentos em vários pontos de uma extensa região nordestina
ao norte do Rio São Francisco, caracterizada por matas de palmeiras.
"Hoje conseguimos saber com um pouco mais de precisão quem
eram as pessoas trazidas para cá: muito provavelmente eram falantes de
kimbundu, língua africana da região do então reino de Ndongo, que ocupava o que
hoje é uma região de Angola", disse.
Dos vários assentamentos de fugitivos – todos conhecidos nessa
época como palmares –, um deles em especial se consolidou durante o período da
ocupação holandesa (entre 1630 e 1654), formando uma rede de mocambos que se
tornou conhecida depois como Palmares. Nove mocambos chegaram a abrigar no
total cerca de 11 mil habitantes, de acordo com algumas fontes.
"Todo mundo diz quilombo dos palmares, mas a palavra
'quilombo' é empregada deslocadamente nesse contexto e é anacrônica para
designar Palmares. A palavra empregada naquele período para designar
'assentamentos de fugitivos' é mocambo", afirmou Lara.
Segundo a historiadora, "kilombo" é uma palavra
africana que significa "acampamento de guerra", usada pelos grupos
nômades guerreiros Imbangala, da África Central. Historiadores como o
norte-americano Stuart Schwartz, da Yale University, consideraram que a formação
dos quilombos nas Américas estava relacionada a esses acampamentos guerreiros –
daí a origem do termo.
"Mas acho que essa não é uma matriz da formação dos
assentamentos dos fugitivos no Brasil. Os kilombos Imbangala tinham rituais
específicos, com morte de crianças, serragem de dentes e canibalismo. Como eram
nômades, não tinham uma ligação territorial nem as linhagens que davam a
legitimidade do poder, diferentemente do que ocorreu nos mocambos do interior
de Pernambuco, onde se formou um reino linhageiro", disse Lara.
Os mocambos se organizavam segundo uma gramática política
centro-africana, explicou a pesquisadora. Como nos sobados centro-africanos (os
potentados locais da África), os chefes políticos dos mocambos do Nordeste
mantinham relações de parentesco entre si e todos estavam subordinados a
Ganazumba, conhecido como rei dos Palmares. "Esse sobado que se formou no
interior de Pernambuco foi reconhecido pelas autoridades coloniais como um
poder político independente, com o qual se podia negociar", disse.
Mudança para Cucaú
A pesquisadora conta que a ideia de as autoridades coloniais
fazerem acordos com fugitivos sempre existiu – e não apenas no Brasil. O de
1678, porém, foi o que mais progrediu. Boa parte dos habitantes dos mocambos de
Palmares mudou-se para uma aldeia criada especialmente para recebê-los, Cucaú,
e eles foram considerados livres.
A paz, no entanto, não durou mais do que dois anos. Uma parte
dos mocambos, liderada por Zumbi, rejeitou o acordo e ficou em Palmares.
Seguidores de Ganazumba, como seu irmão Ganazona, participaram de buscas para
trazer os que haviam permanecido no mato. Ganazumba termina assassinado e
Cucaú, destruída, provavelmente por tropas coloniais. As pessoas que moravam lá
voltaram à condição de escravos.
"A história contada até hoje sobre Palmares é uma história
militante e toda ela converge para o enaltecimento da figura de Zumbi como a
grande liderança que jamais se curvou e resistiu à escravidão até ser morto em
1695; as pessoas reiteram e usaram a mesma documentação para dizer mais ou
menos a mesma coisa", ressaltou Lara. "Essa história passa muito
rápido pelo acordo de paz. Tão rápido que os termos do acordo nunca foram
publicados nas coletâneas de documentos feitas sobre Palmares."
Interessada em discutir as formas de dominação nesse período e o
modo como africanos e indígenas lidaram com o domínio colonial, Lara recupera
de todas as formas o acordo. "A história de Palmares, da maneira como a
estamos estudando, ajuda a entender como a dominação colonial foi enfrentada e
modificada pela ação dos índios e dos africanos na África e no Brasil."
Com o auxílio do Projeto Temático Fapesp, Lara e sua equipe
montaram uma base de dados sobre Palmares, organizada de forma a ser
disponibilizada para consulta pública online. Cerca de 2 mil documentos foram
digitalizados e aos poucos estão sendo transcritos. "Espero que, dentro de
dois anos, tudo esteja aberto para o público", disse.
Diversos bolsistas também produziram trabalhos relacionados à
produção da base de dados. Um deles foi a monografia de graduação "Guerras
contra Palmares: um estudo das expedições realizadas entre 1654 e 1695",
de Laura Peraza Mendes, que ganhou prêmio de melhor monografia de graduação do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 2011.
Mendes defenderá sua dissertação de mestrado, que contou com
Bolsa Fapesp, em agosto de 2013. Lara agora trabalha para transformar em livro
a tese "Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação", com
a qual se tornou professora titular.
Fonte: BOL Notícias
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