Do Portal Unicamp
A educadora Francisca Paula Toledo Monteiro trabalha com
alfabetização e letramento na Divisão de Educação Infantil e Complementar da
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). É professora de crianças na
educação complementar que estão em processo de alfabetização de seis as sete
anos, num trabalho de educação não formal, mas voltado ao letramento e à alfabetização.
Em seu mestrado, apresentado à FE (Faculdade de Educação), há
alguns anos, ela abordou as diferenças e subjetividades na educação, tendo como
foco o fracasso escolar. À época, ela questionou: de quem afinal é o fracasso?
Francisca atua com alfabetização desde os 17 anos e se confessa uma apaixonada
pelo assunto. Ela foi partícipe e se lembra muito de quando foi alfabetizada e
garante que a alfabetização avançou muito. Hoje não encerra mais a concepção de
que quem ensina é o professor e de quem aprende é o aluno. É preciso antes,
salienta a professora, conhecer o mundo.
Portal Unicamp – Há responsáveis pelo fracasso escolar?
Francisca Paula Toledo Monteiro – A resposta é que existem demandas que as
crianças nos trazem e às quais a escola não tem sido capaz de responder. Não
quero, com isso, dizer que a responsabilidade seja exclusivamente dos
professores, mas de todo um sistema, onde a sociedade evolui com as tecnologias
e evolui nas formas de relações humanas. O que se verifica é que a escola se
fecha nos muros da artificialidade. Assim, as demandas que as crianças trazem
não são ouvidas e, se são ouvidas, são interpretadas pelo olhar do adulto e
novamente reenquadradas dentro dos muros da escola, onde não há sentido, muitas
vezes, e nem tem significado para as crianças. Daí o altíssimo nível de
dificuldades na leitura e na escrita que encontramos no quinto e no sexto ano
do ensino fundamental.
Portal – Talvez
isso já tenha a ver com a alfabetização...
Francisca – Sim. A alfabetização no Brasil é muito
deficitária, tanto que hoje nota-se um imenso número de crianças que são
encaminhadas para as clínicas de fonoaudiologia e um imenso número de cursos de
especialização em psicopedagogia e na própria alfabetização e letramento.
Então, penso que a nossa formação pedagógica não dá a ênfase necessária às
questões da alfabetização, isso não só técnica e linguística, mas também
envolvendo o contexto da alfabetização.
Portal – Como você define alfabetização?
Francisca – Trata-se de um processo que se inicia com a
leitura da palavra 'mundo', defendida por Paulo Freire, e com a compreensão,
pelas crianças e pelas pessoas, da função social da leitura e da escrita. E
isso está muito descontextualizado na escola. Toda a sinalização da instituição
e todas as relações organizadas dentro dela deveriam ser feitas junto com as
crianças: os bilhetes, os murais, os diários, as rotinas, os roteiros. Isso
porque elas têm, aí, indícios da função social da leitura e da escrita, porque
organizam o mundo dentro da escola, antes mesmo de desenharem as letras. Na
verdade, no sistema linguístico, o alfabeto é o último reconhecimento que a
criança faz na estrutura da palavra.
Portal – Qual seria o primeiro reconhecimento?
Francisca – Seria a palavra: o texto e o contexto. São
as aquisições nas quais as crianças estão imersas culturalmente. Elas são
constituídas pela linguagem desde que nascem. Então compreendem o sentido
social da leitura e da escrita, porque são capazes, potentes e competentes, mesmo
aquelas que têm dificuldades motoras ou de linguagem. Todas podem estar
inseridas e cônscias de um contexto quando ele está devidamente desenhado. Por
outro lado, se eu artificializo, há uma descontextualização. Quanto mais
artificial, mais dificuldades o sujeito enfrentará para compreender as relações
da escrita.
Portal – O que você chama 'artificializar'?
Francisca – Usar apostilas, trabalhos mimeografados,
xerocopiados ou impressos, e bilhetes prontos que nem sempre são lidos, nem
pelos professores. Não estou criticando o professor, e me incluo nisso, mas
estou vendo que isso é resultado da pressa e do cumprimento de um currículo que
não está voltado à criança. A organização dos espaços e dos tempos é dirigida
ao próprio currículo ou à rotina do adulto, e não às crianças. Gastamos muito
tempo organizando e pouquíssimo tempo com o repertório trazido pelas crianças.
Portal – O que seria ideal na alfabetização?
Francisca – Não creio no ideal e sim em ideais.
Acredito que precisamos escutar as crianças, pois todo ano temos uma clientela diferente que
chega, vinda de culturas diferenciadas, mesmo numa mesma cidade. Aposto numa
construção em que se ouve muito o que as crianças têm a dizer e que enfatiza o
estudo, porque precisamos conhecer os processos de aquisição da leitura e da
escrita. Também não acho que a criança deva escrever do jeito que quer. Ela
adquire, constrói o conhecimento, e o professor vai mediando e alargando o
contexto cultural das crianças. Esta é a função da escola. Não é doutrinar e
domesticar o aluno, mas auxiliá-lo a ampliar a sua visão de mundo e sua
capacidade de sentir, pensar e agir sobre ele.
Portal – O que o professor ensina nos primeiros
contatos com os alunos?
Francisca – Partimos da premissa de que a criança já
teve contato com as letras e que já traz um conhecimento em sua bagagem. Mas
quando estamos com ela, infelizmente esquecemos dessas suas experiências. Daí
pensamos que o primeiro contato com as letras é na escola. Isso não é verdade.
Mesmo tendo pais analfabetos, a criança tem conhecimento, uma vez que sai na
rua, convive com pessoas e sempre tem alguém que é leitor na sua casa ou
próximo dela. Então ela já chega tangendo alguns domínios. A alfabetização
passa por vários processos. que seriam, entre outros, reconhecer que a criança
é capaz e de que ela traz conhecimentos, além de trazer para dentro da sala de
aula os textos, e não as palavras ou as sílabas e letras isoladas. O ambiente
alfabetizador é aquele em que a criança participa de uma construção coletiva
com seus colegas, com a professora, de textos que fazem sentido para ela: o
bilhete que vai para a casa dele, o cardápio da escola, a rotina do dia na
lousa. Daí ela começa a escrever, pois faz tentativas através do próprio jogo
simbólico. Ela vai ensaiando a escrita e a leitura, já a partir de dois a três
anos. Dentro da sala de aula, também é incentivada com a leitura feita pelo
professor. Em alguns momentos, o educador funciona semelhantemente a um
escriba. Enquanto as crianças vão produzindo os textos, o professor vai
escrevendo por elas. A criança precisa, para escrever, saber que se escreve com
letras, não com desenhos. Isso é feito pelo professor mediante comparações com
livros, leituras, textos produzidos em conjunto. O professor mostra que há uma
escrita em comparação a um desenho, a uma escultura. Logo, a própria criança
vai reconhecendo e diferenciando.
Portal – Como é
o reconhecimento inicial na alfabetização?
Francisca – A criança vai ao supermercado e lá observa,
em grande medida, as letras. Ela grava isso, assim como as propagandas. Deste
modo, para alfabetizar, podemos começar com os nomes que elas já conhecem.
Criamos listas nas paredes ou fazemos para elas crachás. Assim vão reconhecendo
os nomes ou textos mais próximos do seu cotidiano. Depois fazem tentativas de
escrita. Também, a partir do estímulo do professor, a criança desenha e produz
uma história. A seguir, vai passear e relatar seu passeio. Traz uma receita de
casa e a professora a executa com as crianças. Escreve-a na lousa. Lê junto com
os alunos. Pede à família que faça o mesmo. A criança vai então transcrever.
Esse é parte do processo.
Portal – Quando se pode dizer que a alfabetização
foi feita?
Francisca – A alfabetização não tem um início, meio ou
fim. Ela não termina nunca. Tecnicamente alfabetizada está uma criança que já
lê, compreende o que foi lido e pode se comunicar a partir de um bilhete. Ela
não precisa conhecer as sílabas separadas, como reza a cartilha, que envolve um
processo fragmentado. O nosso histórico, no passado, foi de fragmentação das
disciplinas. É o que chamamos de um cartesianismo – ter uma linha contínua:
começo, meio e fim, como se isso fosse possível. De outra via, reconheço que
foi uma maneira de avançar nas ciências. Recortou-se o conhecimento a partir da
Filosofia. Então Psicologia e Sociologia se originaram da Filosofia.
Fragmentava-se, transformava-se o conhecimento em departamentos e em
disciplinas para que isso fosse oferecido com a visão de um professor que sabe
tudo e de um estudante que não sabe nada. Esta concepção permeava a
alfabetização a partir da cartilha.
Portal – Você é contra a cartilha?
Francisca – Não uso a cartilha, o que não significa que
tenho algo contra quem a adota. Penso apenas que fragmentar o conhecimento não
ajuda porque a criança não conhece a parte para depois o todo, nem o ser
humano. Conhecemos o todo e depois fragmentamos em partes aquilo que nos
interessa, para reconstruir no novo todo. Cada professor parte de um princípio.
Parto de ouvir a criança, trazer o letramento para a sala de aula, formar um
ambiente letrado em que as escritas, as leituras e as oralidades são
valorizadas.
Portal – Como a criança começa a desenhar as letras?
Francisca – Com dois a três anos, e em qualquer lugar.
Na escola, ela começa a desenhar e, a partir desse desenho, o professor pode
pedir-lhe para representar o que desenhou. Ela ensaia colocando letras. A
professora pode deixar à mostra um alfabeto. Não há problema. Mas as minhas
crianças nunca alfabetizaram porque conheciam o alfabeto. Eu acreditava
piamente que as crianças tinham que reconhecer as letras para serem
alfabetizadas, mas alfabetizei um menino sem que ele nomeasse sequer uma letra
do alfabeto, nem as do nome dele. E ele se alfabetizou em apenas três meses.
Portal – Como isso acontece?
Francisca – A alfabetização se dá na interação do mundo
letrado com a mediação de um professor, cuja concepção hoje é de que a
compreensão e o contexto estão num texto. Não estão na fragmentação das
palavras que, soltas de um contexto, como "o bebê babou", não fazem
sentido. "O vovô viu a uva" também não. Conosco foi assim, em outra
época. Mas o mundo foi se transformando, se aprimorando. As dificuldades de
aprendizagem aumentaram a tal ponto de as pesquisas se iniciarem com Paulo
Freire, em 1960, já preocupado com o nível de analfabetismo porque a concepção
que tínhamos – de sujeito que aprende e que ensina – não é o que acreditamos
hoje.
Portal – Qual é a tendência na alfabetização?
Francisca – As pesquisas e o próprio trabalho que
procuramos desenvolver nas creches é de que essa alfabetização é um processo
que não se dá no primeiro ano só. É um trabalho contínuo. Cabe ao professor
dominar alguns conhecimentos linguísticos, gramaticais e sociais para que ele
não exclua nenhuma criança desse aprendizado e para que organize o seu fazer
pedagógico. Agora o principal: é preciso mudar a concepção de ensino e de
aprendizagem. As crianças são potentes, ativas e participativas. A
alfabetização se dá num contexto cujo eixo é o texto, e não a letra e não a
sílaba. Essa é uma convicção que trazemos da teorização de Paulo Freire, da
leitura da palavra mundo, e das questões trazidas pela valorosa Emília
Ferreiro, a partir da psicogênese da leitura e escrita. Não vejo como uma
tendência. É uma mudança de paradigma: de criança como tábula rasa para um
sujeito aprendiz com potencial e com conhecimento; e de uma concepção de que o
professor é o detentor de todo saber, porque ele aprende muito enquanto ensina.
Portal – Como deve ser a postura do professor nesse
modelo?
Francisca – Ele precisa ser observador, presente, e
qualificar a criança potente. Deve instigá-la para saber mais. Um professor
leitor, que lê muito para seus alunos e que tem uma boa entonação de voz, ele
já está ensinando a criança o texto e a pontuação. Depois é só ele oferecer a
técnica. A própria regra é construída com a criança, a partir de comparações:
por que essa palavra eu leio assim e a outra de outro modo? Como numa poesia,
por exemplo, a criança identifica as rimas? Todas essas são capacidades que o
aluno vai adquirindo no contato com o professor e igualmente com a família.
Portal – Até quantos anos ela tem uma coordenação
satisfatória?
Francisca – Isso varia. Agora se ela vive um ambiente
que pode, com autonomia e segurança, se alimentar, se vestir, amarrar o tênis,
recortar seu bilhete sozinha, ao invés de rasgar papelzinho e ficar treinando
no papel, ela vai se desenvolver sem nenhum problema e vai chegar ao período de
alfabetização, ou em qualquer período da vida dela, sem nenhuma dificuldade e
sem nenhum comprometimento motor.
Portal – Essa coordenação poderá ajudar no quê?
Francisca – É um reflexo de toda a vivência corporal da
criança, mas nos auxilia para tudo. Até para mudança de ponto de vista. A
coordenação inclui tudo, até a capacidade óculo-visual, auditiva e cinestésica.
A coordenação não é só para ler, para escrever e para digitar no computador.
Envolve a confecção de trabalhos manuais e sobretudo a organização da própria
rotina. A criança descoordenada normalmente também está descoordenada no seu
tempo e no espaço. A coordenação não é pela mão. Ela vem de dentro para fora e
de fora para dentro. É o social junto com o pessoal.
Fonte:
Bol Notícias
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